As produções cênicas cada vez mais se vêem invadidas por inventos tecnológicos, encenadores e cenógrafos compõem suas criações por meio de lasers, neons, computadores, projeções, microfones, sintetizadores sonoros, entre outros recursos. Esta integração de dispositivos tecnológicos na composição de obras cênicas não reflete um desejo novo de artistas da área de teatro e dança. Recordemos das idéias contidas no Manifesto Futurista de Marinetti em 1931, das surpreendentes montagens com projeções desenvolvidas pelo cenógrafo tcheco Joseph Svoboda na década de cinqüenta e do famoso evento interdisciplinar 9 Evenings:
Theatre and Engineering, organizado em Nova York por Billy Klüver realizado no ano de 19651. Mas é bem verdade que, desde o final da década de oitenta, verificou-se
uma intensificação do emprego de produtos tecnológicos nas artes do espetáculo, em decorrência do surgimento de equipamentos mais convivais, o computador pessoal, por exemplo, e o desenvolvimento de softwares especialmente concebidos para operação de imagens e sons.
Nas produções cênicas atuais, diferentes são os equipamentos empregados e diversos são os modos de emprego daquilo que se acordou chamar recentemente de novas tecnologias2. As artes cênicas dão então prova de superação do antigo temor da tecnologia, fortemente manifesto quando do surgimento do cinema, compreendendo que a defesa da sua existência não está diretamente relacionada à preservação de um caráter artesanal distinto do desenvolvimento científico. Afinal, se as artes do espetáculo guardam em sua essência a presença viva do homem, a tecnologia não constitui o resultado de uma inspiração tecnocrática motivada de más intenções em relação à humanidade. A técnica não se encontra no reverso da moeda da arte. Aliás, considerando a origem etimológica das palavras “técnica” e “arte”, pode-se mesmo considerá-las como sinônimos, uma vez que a palavra grega tekhnê e a palavra latina ars indicavam o mesmo savoir-faire através do qual o homem é capaz de produzir algo que supra sua vontade. Conforme o filósofo francês Gilbert Simondon (1924-1989), toda esta aparente oposição entre técnica e cultura decorre do desdobramento sofrido pelo pensamento mágico em duas modalidades distintas de pensamento, o religioso e o técnico. Desdobramento que promoveu uma dicotomia entre conteúdo e forma, imagem e utilidade. Entretanto, a estreita relação entre o objeto técnico e o homem desde cedo apareceu reconhecida por inúmeros pensadores. A começar por Aristóteles, segundo o qual a técnica constitui a manifestação material da inteligência do homem e, assim para o filósofo, o homem é um ser técnico. Na mesma esteira de pensamento, H. Bergson afirmaria que o homo faber
precedeu ao homo sapiens, pois a inteligência é essencialmente técnica, ou seja, “faculdade de fabricar objetos artificiais, em particular utensílios para fazer utensílios e disto variar indefinidamente a sua fabricação”3.
A associação entre técnico e a inteligência humana aparece ainda reafirmada nas investigações dos paleontólogos, tal qual André Leroi-Gourhan, quando reconhecem justamente na produção dos primeiros utensílios a prova da capacidade mental do homo faber, uma vez que esta produção exige competência para antecipar a utilização corporal de um utensílio e determinar, em função disto, sua forma e matéria.
No estado atual de nossa cultura, são inúmeras as reflexões sobre o entrelaçamento das disciplinas, a mestiçagem das linguagens artísticas e o
hibridismo das obras
de arte. Poucos são, todavia, os estudos voltados à análise das relações entre tecnologia e atuação cênica, à pesquisa dos reflexos da interação dos novos dispositivos técnicos no fazer dos atores. E, contudo, os recursos tecnológicos empregados inicialmente de forma exclusiva como cenografia passaram, nas duas últimas décadas, a fazer parte direta do jogo cênico de atores e bailarinos. As questões referentes à articulação da tecnologia e a atuação cênica naturalmente se multiplicaram,
convocando o interesse de pesquisa. Até porque a evolução do teatro sinaliza, em outros momentos da sua história, o papel determinante do desenvolvimento da ciência na encenação e conseqüentes transformações sobre o trabalho do ator. Foi notadamente graças ao advento da eletricidade e com ela a utilização da iluminação elétrica no teatro que, a partir do final do século XIX, novos empregos do espaço se tornaram possíveis e, em decorrência, novos modelos de atuação surgiram. Assim, a intensificação de experiências cênicas envolvendo aparatos técnicos cada vez mais sofisticados com os quais os homens da cena interagem, nos convoca naturalmente ao estudo dos comprometimentos
desta “máquina cênica” na criação do ator. Não é nosso propósito esgotar tema tão complexo, mas refletir sobre algumas questões postas por produções específicas de forma a contribuir para o amadurecimento dos fatores envolvidos neste novo contexto das artes cênicas.
Examinemos então o premiado espetáculo brasileiro do autor-ator Michel Melamed,
intitulado Regurgitofagia. Ao batizar seu espetáculo por este neologismo da palavra “antropofagia”, termo cunhado pelo movimento modernista brasileiro em defesa de uma arte brasileira, Melamed acena com o caráter contestador de seu monólogo, através do qual denuncia o consumismo diário e involuntário do homem de inúmeras imagens, slogans, siglas e informações visuais indigestas. Em um cenário vazio, o ator encontra-se ligado por fios nos pulsos e nos punhos a um equipamento eletro-eletrônico, especialmente desenvolvido para o projeto cênico, através do qual todas as reações do espectador, de suspiros a gargalhadas, são captadas por microfones e transformadas imediatamente em pequenas descargas elétricas sobre o corpo do ator. Paradoxalmente, a tecnologia integra a cena, denunciando as experiências do mundo contemporâneo que por ela é sustentado; ela metaforiza a temática da peça: a impossibilidade digestiva diante da proliferação e diversidade de informações produzidas pela sociedade tecnológica.
Além das diversas leituras que a utilização do emaranhado de fios no espetáculo nos suscita, pode-se pensar no comprometimento deste
dispositivo técnico no fazer cênico, propriamente dito, do ator. Encontra-se o ator neste caso transformado em uma espécie de marionete, sob o comando do espectador? Não exatamente, pois seria ingênuo acreditar que a seqüência de descargas elétricas se faz de forma completamente aleatória ao ator, ocorrendo então o domínio do espectador sobre a situação. Mesmo que a proposta tenha por intenção impelir o espectador à responsabilidade daquilo que se passa sobre a cena, colocando-o no papel de torturador, é preciso considerar que o texto e a ação do ator constituem uma partitura de provocação que estimula a platéia a reagir em determinados momentos. A ação do espectador sobre o ator nada mais é então do que uma reação à ação anterior do próprio ator e do texto, como em qualquer outro espetáculo. Em última instância, o dispositivo técnico empregado vem materializar o fenômeno fundamental das artes cênicas na forma de um curto-circuito eletroeletrônico: a interação ator-espectador. O espectador aparece como controlador, ou melhor, como torturador, simplesmente pela dramaticidade atribuída aos aparelhos técnicos pela encenação. Uma dramaticidade promovida pela materialidade atribuída ao contato ator-espectador pelos equipamentos envolvidos. Certamente, o dispositivo desperta o espectador para seu poder dentro do acontecimento cênico, aspecto nem sempre ele consciente para ele e compromete de forma inequívoca o ator a reconhecer a “energia” do público. Não há possibilidade de
descomprometimento ou ambigüidades em nenhum dos lados.
Na performance Recombinant le corps
techn(o)rganique, a companhia austro-canadense, Kondition Pluriel4 emprega um sistema de sensores MIDI, presos aos corpos dos bailarinos (braços, pernas e cabeças), através dos quais seus movimentos corporais são capturados, provocando o deslocamento de projetores e de imagens pré-concebidas de determinados ambientes, bem como interferindo em mudanças de sons. Desta forma, o performer
re-configura o espaço
físico e sonoro através de seu corpo.
Fusionar o corpo biológico à tecnologia constitui tanto uma forma de submissão quanto de poder. É certo que, no caso do uso de sensores, o movimento dos corpos se limita aos parâmetros de ajustes dos equipamentos envolvidos. Mas, ao mesmo tempo, a manipulação da imagem à distância desperta, segundo bailarinos e atores, a sensação de expansão das fronteiras do espaço. A consciência corporal do performer encontra-se largamente ampliada pela existência de um corpo em ação fora da sua extensão orgânica.
Nesta produção de Kondition Pluriel, o bailarino estabelece, por meio da tecnologia, uma nova modalidade de interação entre seu corpo e o espaço e através desta convoca a interatividade do espectador. A proposta de interatividade do espectador, todavia se diferente daquela observada em Regurgitofagia. O
espectador não se encontra, eletronicamente, ligado ao
performer. No interior de uma instalação sonora, visual e física, o espectador se desloca livremente. Mas suas reações se fazem em função das transformações espaciais e sonoras promovidas pelo performer. Estabelece-se
então um circuito indireto entre bailarino e espectador. Seus deslocamentos pelo espaço constituem respostas ao diálogo do corpo do performer com o espaço físico e sonoro promovido pela tecnologia instalada, um diálogo que se faz sobre o princípio da improvisação e que visa garantir à encenação um caráter dinâmico.
Ao lado do requinte dos sensores MIDI, situações mais simples de integração da tecnologia ao trabalho do ator são encontradas sobre a cena contemporânea, a começar pelo uso de filmagens realizas ao vivo como elemento da encenação. É o caso dos atores do Volksbhune em Endstation América
sob a direção de Frank Carstof, quando as ações realizadas por seus personagens, no interior de um banheiro fechado ao olhar da platéia, são capturadas em vídeo e imediatamente retransmitidas ao espectador por meio de televisões. Além da forte crítica aos reality shows, exige-se aqui o reconhecimento, pelo ator, da transformação de seu corpo real em outra imagem, sua consciência e responsabilidade no direcionamento daquilo que será capturado e
veiculado ao espectador. A situação do ator dentro desta proposta é, portanto, paradoxal. Na relação com o espectador, seu corpo, por um lado, sofre um processo de redução aos limites do monitor, por outro, o corpo se multiplica no espaço por meio dos diversos monitores. Através de princípio diverso daquele empregado por Kondition Pluriel, o ator tem sua corporalidade igualmente desterritorializada.
Nova situação se instaura quando, aos próprios atores, cabe filmar ao vivo outros personagens ou espectadores. Quando aos atores é dada uma câmera de vídeo para uso real em cena, exige-se uma capacidade de controle do equipamento, mas ao mesmo tempo, atribui-se a eles o poder de decidir a aparição ou não de determinado elemento, fato ou pessoa. O ator ganha, portanto, novo instrumento de participação da escrita cênica. Ele produz imagens para além de seu corpo. Filmar ou estar sendo filmado por outro ator, torna-se fator de diálogo físico e dramático. A tecnologia se afirma então como parte do discurso dramático. Neste sentido, Carstof nos oferece no espetáculo já citado uma cena exemplar, quando em meio a um discurso raivoso de Blanche, Stanley passa a filmá-la e lhe diz: “Calma! Você está fora do quadro”.
A tecnologia transforma também o acessório mais antigo do ator, a máscara. É o que se pôde observar em Trois Derniers Jours de Fernando
Pessoa 5, quando o encenador canadense Denis Marleau empregou
uma máscara vídeográfica na composição dos heterônimos do poeta português. Produto de um minucioso trabalho de pré-produção, envolvendo um videasta e um escultor 6,
a referida máscara resulta de imagens em vídeo do rosto do ator ao dizer o texto, previamente registradas e
sobrepostas sobre uma máscara branca confeccionada sobre o rosto exato do ator. Assim, sob o olhar do espectador, o ator encontra-se duplicado. No leito de morte, Pessoa se encontra com seu heterônimo, representado por um ator com a máscara videográfica do rosto do ator-poeta.
Observam-se desafios particulares postos aos atores neste contexto de duplicação da identidade do ator. Para o registro em vídeo teve o ator, cujo rosto foi duplicado, condensar exclusivamente na voz toda a expressividade da situação dramática proposta pelo texto. Deve ser capaz de compor imagens sonoras através de flutuações vocais, ressonâncias e rupturas, controlando todo e qualquer outro movimento do seu corpo, de forma a garantir o efeito de máscara a ser composto ao final. Situação inversa se coloca ao ator que porta a máscara videográfica em cena, estando obrigado a trabalhar a dramaticidade através de uma gestualidade composta nos limites do foco da imagem projetada sobre a máscara branca que cobre seu rosto. As situações de contracenação mostram-se também inusitadas. A um ator cabe contracenar com sua própria imagem projetada, tornar-se ouvinte de si mesmo e, por sua escuta, imprimir presença viva a sua voz já vivida. Ao outro, cabe realizar uma contracenação no limite exclusivo de seu tronco e membros. O domínio do tempo pelo ator aparece finalmente como fator imperativo desta proposta que reúne atuação com máscaras videográficas, pois o sucesso da proposta encontra-se diretamente associado à qualidade da coerência e sincronia do gestual realizado em cena com as imagens previamente registradas. Através da ação dos atores sobre a cena, o virtual atualiza sua verdade diante do olhar do espectador.
Examinando
estas e outras produções da cena contemporânea, duas questões se impõem de forma recorrente. A primeira, a da submissão do ator aos sistemas tecnológicos e a segunda, a do potencial de presença do ator. Na realidade, o maior receio das artes cênicas na integração de objetos técnicos sempre esteve no risco do homem da cena vir a ser subordinado às máquinas. E é preciso admitir que em muitos casos ocorreu no teatro um esvaziamento da força cênica do ator em favor do encantamento do espectador por imagens projetadas em telões. A desconfiança da arte e da cultura em geral em relação à técnica aumentou na medida em que os utensílios, cujo emprego se faz no prolongamento do corpo, cederam lugar às máquinas, cujo funcionamento guarda certa autonomia em relação ao homem. A independência “teórica” da máquina explica os temores da substituição do homem e as conseqüentes desconfianças de seu uso, constatava o filósofo Gilbert
Simondon. Porém, insiste ele, é falso o entendimento usual de que há uma estreita e direta relação entre grau de “automatismo” e a perfeição tecnológica, tal qual sonham alguns e temem outros. “O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas”, sustenta Simondon, “corresponde não ao aumento do automatismo, mas ao contrário, ao fato do funcionamento da máquina preservar uma margem de indeterminação”. Isto porque, a máquina totalmente automatizada não é sensível a estímulos externos e, portanto, seu produto será sempre o mesmo. É porque, insiste Simondon, “a máquina dotada de alta tecnologia é uma máquina aberta, e o conjunto das máquinas abertas demandam o homem como organizador permanente, com interprete vivo delas umas em relação às outras. (...) O homem é o organizador permanente de uma sociedade de objetos técnicos que tem necessidade dele como os músicos de um chefe de orquestra” 7.
Na medida em que se agregam novos dispositivos tecnológicos à cena, esta se torna uma máquina cênica. E, seguindo o pensamento de Simondon, podemos considerar a máquina cênica mais aberta ou fechada, justamente, conforme o grau de permissividade dos dispositivos tecnológicos, conforme uso da encenação, aos estímulos externos vindos dos atores ou bailarinos, conforme as possibilidades ou não de interação dos homens da cena. Em todas as situações aqui examinadas, percebe-se que os dispositivos tecnológicos são empregados em associação direta com a criação do ator. Não se trata de um vídeo que corre em paralelo à ação dos atores, mas sistemas com os quais os atores exploram respostas reativas, contracenam, manipulam.
Os dispositivos técnicos empregados nas produções descritas constituem uma interface, através das quais os atores e bailarinos instauram novos modos de contato com o espectador e com o espaço, realizam novos modos de construção de imagens visuais e sonoras. A máquina cênica estará aberta quando sobre ela o “artista trabalha a tecnologia para lhe dar um sentido outro que sua finalidade técnica” 8.
A integração de novas tecnologias à criação do ator se faz mais freqüentemente através de dispositivos de produção de imagem. E aqui se impõe naturalmente a questão da presença do ator, pois apesar das diferenças dos sistemas empregados e dos desafios próprios a cada uma das situações cênicas, toda interação entre o corpo do ator com dispositivos de produção de imagens infere na percepção do espectador. Pois, como esclarece P. Levy, há
uma relação simétrica entre percepção e projeção, tanto da ação quanto da imagem 9.
O corpo conectado à tecnologia vem então aparecendo ao espectador duplicado, multiplicado ou mesmo transfigurado em duas matérias distintas, um rosto virtual sobre tronco e membros próprios à vida orgânica. O ator não se encontra desmaterializado, mas encarnado em novas substâncias. Se seu corpo pensa, com auxílio da tecnologia, ele sai dos limites de sua pele. Assim o homem se reconstitui no exterior de si mesmo. Com isto, mais uma vez se impõe a questão da presença cênica, tão cara ao teatro contemporâneo quanto polêmica. A pesquisa de Eugênio Barba, por exemplo, sobre a presença do ator, encontra-se alicerçada em uma noção de corpo individual, estando assim a presença diretamente relacionada a fatores operacionais orgânicos do corpo em movimento. Ora, na interação com as tecnologias de imagem, o ator ou bailarino se coloca, diante do espectador, possuindo não “um” corpo, mas encarnando sua existência em “muitos” corpos distintos. Ele ultrapassa as fronteiras próprias do seu limite orgânico. Ele opera uma multiplicação de seu modo de existir. Assim, o corpo não se encontra “dilatado”, mas desterritorializado. Ele sofre uma “reinvenção,
uma reencarnação, uma multiplicação, uma vetorização, uma heterogênese do humano” 10. Novamente seguindo o pensamento de Simondon, para quem a “realidade é relacional” 11, a questão da presença do ator ou do bailarino pode ser pensada como um “entre”. O ator compreendido como um ser em articulação, inclusive com sua própria ausência orgânica, tem sua presença constituída no movimento relacional de conexão do seu corpo com os diferentes elementos da máquina cênica. A presença do ator não pode ser pensada como um modo de ser. A presença do ator está mais do que nunca afirmada como processual. As novas tecnologias podem em última instância contribuir para fazer da cena uma máquina aberta, onde os atores compõem o que H. Bergson denominou de “realidade se fazendo”.